31 de out. de 2010

Como se os advérbios lhe retirassem a dor

Divagava pouco, mas falava de mais por estar alcoolizado. Gritava para que os sapos saíssem de sua garganta e ele pudesse respirar. Impulsivamente.
A ansiedade lhe consumia e não sabia se conseguiria aguentar por muito tempo. Esperava respostas e palavras que não sabia se um dia chegariam. Inseguramente.
O café não lhe descia e pensava na possibilidade de adoçá-lo: uma tentativa vã de adoçar sua vida que andava sem sentindo. Insensivelmente.
Tomava goles curtos como que para disfarçar que conseguiria. Dissimulava sentimentos e pensamentos em palavras vãs. Inutilmente.
Pensava em saltar janela fora, mas lembrara que morava no primeiro andar. Eis que chega um sopro no ouvido e ele se confunde. Tremulamente.

26 de out. de 2010

Primeiro dia: A mudança de caminho inesperada

Habituado no mesmo número de passadas por caminhos repetidos diariamente chegava ao trabalho alguns minutos atrasados. Entrava sorrateiro para que ninguém percebesse o adiantamento nos ponteiros do relógio. E, maquinalmente, sentava por detrás de sua mesa de trabalho e ainda como máquina repetia tarefas maquinais. No bater das badaladas do seu horário de saída percorria cabisbaixo seu caminho habitual de volta em direção ao ponto de ônibus como quem chega a um fim de um dia sem sentido. Apalpou os bolsos e descobriu seu maço de cigarros vazio: era obrigado a mudar a rota. Desgostoso dobrou na primeira esquina procurando algum boteco ou algo que o valha. Após caminhar dois quarteirões por ruas que pareciam infinitas em meio a imensidão cinza pode ver o lúmen e a fumaça engasgada entrar e sair de seus pulmões.
Não tragaria novamente e deixaria a cinza se formar na ponta de seu cigarro por boquiabrir-se diante dela. Andava cabisbaixa da mesma forma que ele: como quem chega ao fim de um dia sem sentido. Decidiu andar por trás de seus passos mesmo sabendo que não teria coragem de fitá-la longamente ou profundamente, sabia também não lhe dirigiria à palavra indango coisas banais ou demonstrando interesse em tê-la perto, mas a seguia.
Percorria o caminho dela de volta como se quisesse fazer parte de seu caminho e, dessa forma, tocar seu âmago. Distraidamente a seguia envolto em suas imaginações e divagações sendo quase atropelado e quase a atropelando por não notar que ela parara no ponto de ônibus. Imaginou que fossem vizinhos ou que pudessem morar próximos e que poderia a ver todos os dias no seu percurso ao trabalho e de qualquer forma pertencer a vida dela.
Aguardava ansiosamente que ela adentrasse na mesma linha que ele e, assim, pudesse descobrir onde morava. Inutilmente. Seu ônibus chegou e ela não embarcou. Desistiu de embarcar também para, ao menos, descobrir em que região da cidade ela morava. Aguardou pacientemente. Ela ensaiou um movimento, que ele notou pelo canto dos olhos, em direção ao ônibus que chegava. Pensou que poderia pegar aquela linha também, mas teria que caminhar o dobro do caminho costumeiro. Não mediu esforços.
Se alojou em um lugar do ônibus que não era muito próximo a ela, mas que poderia notar caso ela o fitasse e poderia a cuidar pelo canto do olho. Mesmo com o sol se pondo, colocou seus óculos escuros na tentativa de ficar em invisível em suas olhadas. Torcia, quase que, fervorosamente para que ela descesse em um ponto anterior ao seu. Inutilmente. Se aproximava da parada de ônibus e ela seguia imóvel. Calculou a distância e decidiu desembarcar um ponto após o costumeiro na esperança de que ela também o fizesse. Tampouco adiantou e voltou desconsolado para sua casa. Ela nem, sequer, notou sua existência.

13 de out. de 2010

Apalpava os móveis e as paredes que os ligavam lentamente buscando encontrar o caminho que levava a claridade. A luz havia cessado há alguns segundos pelos tiques do ponteiro dos segundos do relógio, mas haviam decorrido milhares de anos para ela. Ela o chamava e ele, como se suspirasse, pedia que ela se acalmasse. As suas pernas tremiam e ela via a sua falta de algo na escuridão que a cercava. Pelas frestas da janela notava que o restante da vizinhança também seguia sem luz. Ele seguia lhe dirigindo a voz para que se acalmasse e ela notava pelos sons que ele procurava algo. Lembrou de sua infância que sua mãe guardava velas na quarta gaveta da cozinha. Talheres na primeira, como em todas as casas que conhecia, coisas inúteis na segunda gaveta, panos de prato na próxima e velas no fundo da gaveta bem embaixo. Não conseguiu lembrar quando começara a temer a escuridão. Pior que o escuro eram as luzes que entravam pelas frestas das janelas e formavam formas que ela imaginava rostos e imagens carregadas de peso. Temeu sua escuridão interior que permitia a entrada de poucas frestas de luz. Não sabia o porquê de nunca ter aberto um espaço para a claridade entrar como se fosse um dia ensolarado em que a luz invade as janelas e esquenta todo o amibente e nem o motivo de ter deixado frestas no lugar da escuridão total que tentou manipular e impor a si mesma. Lembrara das faltas de luz mais freqüentes durante sua infância e se sentia tonta diante da lembrança de sensações e da busca de colos que, muitas vezes, demorava a encontrar.

9 de out. de 2010

Pintando as paredes do Ser claustrofóbico

Ser me dá claustrofobia. Vou me adentrando tão intensamente e fechando portas do âmago e da alma que perco o caminho aos poucos e o ar cada vez fica mais rarefeito. No meu interior as portas são de vidro e, assim, sou obrigado a ver tudo que se passa ao redor. Já tentei quebrá-los milhares de vezes inutilmente pensando que dessa forma deixaria de ser.
Comprei uma tinta fosforescente e, hoje, comecei a pintar a parede mais interna para que eu não possa mais enxergar o que me cerca. O brilho das cores é tão forte que assim serei obrigado a me manter de olhos fechados para o meu Ser e meus olhos se arderão a qualquer tentativa de espiar. Ainda faltam muitas paredes.

7 de out. de 2010

e o pingo que não pinga e que molha sem querer

passo rápido,
céu nublado,
pingos dispersos:
multidão que esbarra.

passo automático,
céu que desaba,
pingos grossos:
multidão que foge.

passo lento,
céu claro,
pingos ausentes:
multidão indiferente.

passo torto,
céu invisível,
pingos internos:
multidão que se transforma.

passo por ti,
céu que se abre,
pinga sobre mim:
multidão transfigurada.

2 de out. de 2010

Um temperamento que quisera

Apoiava as paredes com suas costas arqueadas e as marcava com as solas gastas de seu único par de sapatos. Era um bibelô em meio as pessoas. Não pertencia a toda aquele alvoroço que era viver. Respondia com meias palavras e não demonstrava empolgação sobre coisa alguma. Nasceu enrugado e nunca tentara evitar. Tinha gomos nos cabelos e sua camisa branca anda sempre amarrotada. Era proposta companhia, ele negava sem fitar qualquer pessoa nos olhos. Conhecia profundamente todas as marcas e vincos no chão do lugar. Nunca buscou ser aquelas pessoas que faziam sua festa particular. Apenas não queria sair de sua dor de particular. Nascera morto e não reviveria jamais.