2 de jan. de 2015

Um sonho

Leia imaginando uma ambientação como um filme de Cronemberg, no qual as cores não são saturadas, os cortes são longos e os diálogos com um quê de nonsense, mas ainda sarcásticos e realistas.
Era um prédio antigo, central, muito alto e cheio de corredores com pouca luz, paredes verdes escuras e coberto de portas velhas de madeira fechadas. O cheiro de mofo era presente no ar rarefeito. Ao fim de uma andança que parece infinita, chegamos, eu e meu companheiro – um rapaz claramente mais jovem e inseguro; alto, magro e ossudo, como se tivesse crescido muito em um pequeno período de tempo – a um mezanino com as paredes cobertas de janelas de vidro transparente que parece ser uma galeria. Há apenas uma pessoa nesse espaço que é uma galeria de arte com quadros surrealistas pelas paredes.
Estamos na casa de meu amigo. Uma casa grande, mas sem muitos luxos. A casa me lembra a de um amigo de infância que não vejo há muito tempo. Na sala, com paredes de tijolo à vista, há uma parte elevada em uma das extremidades coberta de prateleiras até a metade das paredes com livros.
Vamos até o seu quarto que fica depois da cozinha e da área de serviço, como se fosse um anexo a casa. Ele destranca a porta e me mostra seu quarto. Não lembro bem o motivo de irmos até lá.
Meu amigo sai de casa para realizar algum afazer e fico lá. Nisso conheço sua mãe, uma mulher loira de óculos de aros grosso e cabelo crespo loiro armado. Ela tem um ar de scholar. Também sou apresentado a sua namorada, uma menina alta, com cabelos pretos e lisos muito compridos, também usa óculos de mesmo estilo e tem uma postura um pouco encurvada. Ela é muito discreta no seu vestir e nos movimentos e fala pouco.
Saio para uma área externa que serve como garagem. Há um carro utilitário antigo. Vejo uma cobra se movimentar pelo chão que é abatida rapidamente por uma pedrada. Não vejo o autor do disparo. Sou espiado por um menino pré-adolescente que aparenta esnobismo pela janela.
Estou no quarto de meu amigo com sua namorada. Na TV, localizada na parede, passam reprises no mudo. Tenho a impressão de que já conheço ela de tempos longínquos, entretanto ela não é ela. Com poucos gestos, sou instruído a me aproximar dela. Nos deitamos. Noto que a porta está entreaberta e levanto-me para fechá-la. Observo que há uma chave pelo lado de fora, entretanto não é uma chave de portas internas, mas uma chave como as de casa. Nisso percebo que meu amigo mantém o quarto chaveado em sua ausência. Pergunto se devo trancar e ela responde afirmativamente, reflito sobre as aparências de estar com ela em um quarto trancado, mas imagino que o flagra é pior. Ela parece não fazer caso disso, como também parece não fazer caso de nada, como se vivesse um mundo que não fosse esse.
Ela vira de costas para que eu a penetre. Logo após alguns movimentos, acho que vou gozar. Tento distrair-me. Ela não faz ruído algum, permanece de olhos fechados como se fizesse qualquer tarefa cotidiana, embora sua expressão se transforme ao fim de cada movimento vagaroso que eu realizava. Depois de aproximadamente dois minutos, sinto o gozo percorrer meu pênis. A sensação de expulsão de muita porra armazenada me amolece e intimida pela rapidez do ato.
Sinto-me um pouco confuso com as aparências, pergunto se devo sair, vestindo as calças, e ela me fita com indiferença, mas com um bocado de afirmação. Destranco a porta e vou ao banheiro que é o cômodo contíguo. Ao tentar empurrar a porta, noto um obstáculo: por detrás da porta há um cachorro muito grande que parece uma mistura de labrador e dálmata impedindo a abertura total. Como a maioria desses cachorros de porte gigante, ele parece muito bobo e o empurro. Ele parece não ligar. Enquanto estou urinando, vejo que um cachorro muito pequeno que me olha e late.
Sento-me no chão da parte elevada da sala por instrução da mãe de meu amigo. Ela fala calmamente e de forma simpática. Pergunta se sou colega de seu filho e a menina que acabara de ter o coito responde que vou estudar gastronomia. Ela parece se alegrar e diz que quer que seu filho faça o mesmo, já que ele pode viajar sempre que quiser e isso ser benéfico para realização de tal curso. Digo que estou acabando o mestrado em antropologia, mas que não gosto muito. Ela pergunta em que curso havia me formado e respondo que em Ciências Sociais. Ela me fita com um sorriso que parece denunciar uma inocência por minha parte. Só nisso dou-me conta do ambiente intelectualizado que estou situado.
Meu amigo chega e é recebido por sua mãe dizendo que ele deveria estudar gastronomia. A afirmação é respondida por um olhar inquisidor típico de filhos para as mães. Anuncia que devemos  ir a algum lugar que previamente já havia sido definido. Sua mãe, que também estava sentada ao chão comigo, levanta-se como fosse também. Ela me aponta a saída para a garagem. Quando estou de saída, noto o olhar repressor do menino mais moço na extremidade contrária da sala. Vou a frente em direção ao carro e ao me aproximar vejo uma espécie de pintura rupestre de um galho com uma cobra enrolada. A mãe de meu amigo sai correndo em direção a porta da garagem, como se também tivesse visto minha epifania. Só agora noto seu poder de clarividência.
Nisso sou acordado com um grito e com a impressão de que estou molhado.

8 de dez. de 2014

Algumas confissões

"Chorei, chorei até ficar com dó de mim."

Houve um tempo que fui pouco e de tão pouco não tinha nada para dar. Não me via ao espelho porque não havia ângulo possível de encontrar formas. Era como se o que comesse ou bebesse passassem diretamente pelo corpo porque não havia nada para alimentar ou saciar. Mas nessa ausência de doação ainda restava um pequeno ponto que era maior do que todo esse quase nada, uma vontade. Havia uma vontade de ser, de dar, de mudar. Sempre fui um egoísta, mas não o fui por ignorar, mas por optar por não ligar.
O tempo veio, como sempre há de vir. Pequenas coisas se aumentaram e tive uma esperança. Achei que poderia ser, dar e mudar, entretanto segui egoísta e fiz tão pouco. Fiz pouco por achar que tudo que faria não era o suficiente e eu que não era nada, só poderia dar nada e não adiantaria.
Uma vez ouvi que tinha um sorriso bonito. Eu não era lá de tanto de sorrir. Por outro lado, adorava rir de bobo. Quando criança me caçoavam dizendo que eu era o melhor público para piadas, pois ria de qualquer coisa. Tava aí algo que eu era bom. Esse sorriso que eu soube bonito e sempre mantive escondido, passou a abrir-se constantemente, como se rindo pudesse ser. Nas fotos já não fazia caretas ou me escondia com medo que minha invisibilidade transparecesse, mas abria o maior sorriso possível querendo que com ele todo o restante vazio fosse invisibilizado.
E do tempo que ria e era alguém podia ser leve e andar por aí como que se não houvesse pressa para nada. Entretanto as outras ausências gritavam e acabaram por sucumbir com o sorriso. Tive medo de me mostrar, desde que me lembro. Escondia-me por detrás das pernas de meu pai caso houvesse qualquer situação que exigisse que eu aparecesse. Mais tarde me perguntaram se eu ainda falava tudo com os olhos e um pavor me consumiu. Achava que eu era bom na arte de me tornar invisível e esconder qualquer sentimento com apatia mesmo que eles gritassem dentro de mim.
Isolei-me toda a vida. Passava uma impressão de critica demasiada e de uma solidão buscada. Sempre tive um medo de transparecer o medo. E esse medo me imobilizou. Se não há ninguém por perto, não há ninguém para decepcionar. Fingia apatia, já que quando não se liga para o que acontece, tanto faz.
Dessa forma, fui aparentando desvalorização de qualquer coisa: amigos, saúde, felicidade. A desculpa era repetida que tudo era fingimento e haveria de passar. E de tanto fingir que não fingia, passei a não ligar. E ao não ligar, a ausência que atormentava tornou-se um buraco ainda maior. Como o poço do poço. No fim, encontrei-me onde sempre aparentei querer estar: sozinho, infeliz e dando a mínima.
O coração teima em bater e sempre tive em mim todos os sentimentos do mundo. Quis aparentar não ligar pra eles, mesmo sendo a pior mentira, até que não liguei. Hoje sinto falta de sentir. Me vejo em um vazio ainda maior. O sorriso bonito não existe mais, os olhos estão apagados e não consigo encontrar aqui dentro nada que inspire que o coração ainda bata.
Diziam que quando se corre risco de morte, a vida passa como um filme. Acho que é mentira, mas acredito em tão pouca coisa. Hoje entendo bem que sem sentir não há filme para passar. Também sei que esconder qualquer faísca do que sinto, acaba por fazer que a pedra não faísque mais. Hoje só quero ser o amor que sempre quis ser e nunca me permiti.

4 de abr. de 2014

Branco e blue

Há muito tempo atrás, eu tive uma menina. Naquela época ainda achava que a gente deveria ter as pessoas que amava. No final dos anos de rebelde, como se hoje já tivesse deixado a adolescência pra trás. Sempre fui muito burro e só podia sentir algo por quem não me tinha apreço. De tanta insistência ela passou a me gostar, foi o começo do fim. Foram tempos de deitar na grama, muito vinhos baratos e discos repetidos do Belchior até eu conseguir, pouco a pouco, afastá-la. Perto do fim, roubamos uma planta juntos. Duas crianças não podiam compartilhar uma casa, compartilhavam uma planta. Ela me deixou, eu fiquei com a planta e, coincidentemente, dei-me conta que o amor que guardava tinha se esvaecido no mesmo dia em que a planta já não ficaria mais erguida.
Seguindo no mesmo erro, já alertado por minha mãe, amei essa outra menina. Ela era geniosa e muito delicada. Criou-se uma relação de posse lentamente, embora já não fosse mais necessário e, tampouco, pretendido. Eu já havia sofrido um bocado e sabia o quão difícil era estar do lado de alguém. Foram tempos de poesia e canções ao violão; filmes repetidos e noite sem dormir. Fui embora, deixei meu coração. Ela, tardiamente, apareceu por aqui e meu quarto se encheu de pássaros azuis. Pouco a pouco eles foram caindo da parede com a partida. Ainda restam dois.
Nunca acreditei em destino. Hoje torço todos os dias que acordo para que os dois desabem e eu siga adiante.

12 de jan. de 2014

Sobre o tempo

E, além disso, quero que tu me prometas uma coisa desde já. Já? É importante. O que é? O tempo vai passar. Ele sempre passa. Calma. Desculpe. O tempo vai passar e tem tanta vida que vai junto. O amor perde o sentido original e ganha outros. O lençol fica puído, o sexo torna-se hiato. O corpo não é o mesmo e o desejo se transforma em cotidiano. Não te entendo. Não quero que sejamos daqueles que ficam velhos e chamam um ao outro de pai e mãe, depois de vô ou vó. Meus avós chamam um ao outro de negro e negra, acho bonito. Também não quero ser chamado de paixão ou de amor. Mas é tão terno. Mas esse amor que repete todos os dias acabar por se tornar um ô, você. Mas crianças precisam que refira-se ao outro como pai e mãe para que eles chamem também. Prefiro que meus filhos me chamem pelo nome a correr o risco de que tu me trates de forma automática. Quando disser meu nome depois de 50 anos juntos ainda vou saber que me ama. Quando morrer não quero que tu diga meu marido ou ex-marido ou o vô, ou o pai: quero ainda ser o que serei pra ti a partir de agora. E como posso te chamar? Como bem queiras. E qual é teu nome? Promete?

14 de dez. de 2013

Say hi, little stranger

Marcello dava festas para cobrir seu silêncio. Dia posterior, gritava para as paredes que o apoiaram em sua lisérgica e alcoólica noite anterior. Era injusto. Consigo mesmo, além das paredes. Mais um banho de chuva. Sair de casa entala um choro na garganta. Ele não entende muito o por quê. Finge que não tem esperanças. Será fingimento? Aperta F5 desesperadamente imaginando que o vulto da noite anterior realmente exista. Será fingimento?

17 de out. de 2013

Parte primeira

Seu dia começava nublado pela visão de sua janela e dentro de si mesmo. Não tinha vontade de levantar, mas já não trabalhava há dois dias. Não sabia se era incompleto por não saber como completar-se ou por falta de ânimo. Embarcou no ônibus para o trabalho meia hora depois que deveria estar chegando.

Durante o caminho para o trabalho tentava ler alguma coisa. Repetia as mesmas linhas sem se dar conta, mas tinha vergonha de guardar o livro de volta na sua bolsa logo depois de tê-lo aberto. Sempre tivera essa sensação que era observado por todos ao seu redor. Quando criança imaginava câmeras escondidas por sua casa. Sempre ao tropeçar na rua olhava para os lados tentando notar quantas pessoas haviam reparado. Decidiu que iria embora naquele dia. Não sabia como, mas iria. Sempre tivera boas ideias ao andar de ônibus. O sono havia passado, mas seguia sem vontade de trabalhar. Lembrara de um dia que foi trabalhar sem ter dormido. Recebera uma visita naquela madrugada e a fez prometer que não o deixaria dormir. Viravam-se na cama, olhavam para o teto juntos: rindo sem o menor motivo. Passou um bule de café ao depararam-se com as primeiras luzes adentrando as frestas da janela. Foi a última vez que a viu. Não se despediram.

Tinha vergonha de entrar no trabalho tão atrasado, mas fingiu que não tinha se passado. O chefe fingiu que ele não estava ali e ele baixou a cabeça para tentar colocar seu trabalho em dia. Sua cadeira rotatória parecia dar voltas em seu próprio eixo e, cada vez mais, sentia-se tonto. Todos os dias ele se recriminava pela sua mania de procrastinar, mas não conseguia fazer nada a respeito. Faltavam-lhe forças, mais do que isso, faltava ânimo.

Era uma quinta-feira. Decidiu que viajaria no dia seguinte em direção a Porto Alegre. Foi ao banco após o trabalho e notou que tinha menos dinheiro do que imaginava. Ele sempre tentava mentir pra si mesmo quanto aos seus gastos. Ao se deparar com a realidade do extrato bancário, via seu novelo cada vez mais emaranhado. Foi à rodoviária comprar sua passagem mesmo sem saber se teria dinheiro para voltar para casa. Animou-se instantaneamente como se tivesse aplicado a si mesmo uma dose de adrenalina. Não soube o porquê. Talvez a viagem lhe traria um pouco de esperança.

Acordou cedo no dia da viagem, amassou algumas roupas dentro da sua bolsa, alguns livros e um caderno de anotações. Ao fechar a porta, teve impressão que seu apartamento não seria o mesmo ao voltar para casa.

Chegou cedo para trabalhar. Seu dia pesadamente de forma apressada. Saiu tardiamente da labuta, mas seu ônibus ainda demoraria duas horas para sair. Lembrou que não havia avisado para ninguém que viajaria e nem sabia onde ficar em Porto Alegre. Pensou em ligar para alguns amigos, mas desistiu. Queria ficar só naquele dia. Bebeu uma cerveja enquanto esperava na rodoviária e fumou mais cigarros do que deveria.

Ao entrar no ônibus, carregava um peso que parecia colocar em xeque a vida que levava. Só tinha uma certeza: pelo menos ainda há um movimento possível.

Fechei os olhos logo após ter sentado na poltrona e só voltei a abri-los na entrada da rodoviária que passei todos os finais de semana por muitos anos atrás. Ela carregava a melancolia e o saudosismo do tempo que havia morado naquela cidade.

Já passava da meia-noite, mas não quis tomar um táxi. Desci até o metrô e tomei o último trem até o mercado público. As ruas sujas e o cheiro de peixe me alegravam estranhamente. Vaguei pelo centro até a Lima e Silva.

Sentei em algum bar da Rua da República e pedi uma cerveja. Quando voltei a mim, o garçom tocava meu ombro dizendo que o bar fecharia logo e se eu queria mais uma cerveja. Recusei. Vaguei de bar em bar até amanhecer. Não sei dizer por quais lugares passei e as pessoas que lá estavam. Algumas falaram comigo e como quem coloca um aviso na porta para que não incomodassem, apenas me desculpava e buscava o fundo do copo e logo da garrafa. A noite passou em um piscar de olhos e sol apareceu antes que eu esperava. Carregava um cansaço nas costas, mas não sentia sono.

Voltei para o centro da cidade e caminhei sem direção anteriormente especificada. Passava por lojas carregadas de poeiras e memórias que me despertaram uma curiosidade inexplicável. Sentia adentrar em mim, sem permissão prévia, aqueles significados dos objetos usados que eram vendidos naqueles antiquários. Não saberia dizer quanto tempo contemplei as vitrines que ali estavam. Anos se passaram para mim e eu seguia estático a cada nova vitrine. No centro de um armário de vidro espelhado notei de longe um relógio de bolso. Estava sem tampa, mas parecia que havia um holofote voltado para ele. Não sei o que mais era vendido naquela loja, talvez só existisse o relógio. Tanto faz. Para mim só existia ele.

Um senhor antipático perguntou o que eu desejava. Bati os ombros e parei em frente ao armário. Ele me falou que o relógio custava vinte reais. Tirei todo o dinheiro que tinha nos bolsos e ainda faltavam três reais. Ele disse para eu voltar depois. Abri minha bolsa e tirei uma caneta que havia ganhado há muito tempo. Não conseguia recordar a situação e não me esforçava para tal. Ele aceitou e me cobrou mais dez reais pelo relógio. Coloquei-o no bolso do paletó e me dirigi à porta da loja com certo receio. Como quem vai embarcar em um avião e tem medo de ser parado no detector de metais. Senti que carregava um fardo no bolso, mas um fardo que brilhava e refletia toda a esperança que havia conquistado ao embarcar na jornada.

Vejo um rosto familiar atrás da vidraça. Um rosto que não via há muito tempo e que talvez fosse o que mais desejava encontrar no momento. Tentei correr em direção à porta, mas as pernas pareciam pesar milhares de toneladas. Fui carregado pelo vento e abri a porta em um impulso.

Olá.

26 de set. de 2013

eu estou bem, dizia-lhe, estou bem. e ele queria saber se estar bem era andar de trombas. eu respondi que o tempo não era linear. preparem-se sofredores do mundo, o tempo não é linear. o tempo vicia-se em ciclos que obedecem a lógicas distintas e que se vão sucedendo uns aos outros repondo o sofredor, e qualquer outro indivíduo, novamente num certo ponto de partida. é fácil de entender. quando queremos que o tempo nos faça fugir de alguma coisa, de um acontecimento, inicialmente contamos os dias, às vezes até as horas, e depois chegam as semanas triunfais e os largos meses e depois os didáticos anos. mas para chegarmos aí temos de sentir o tempo também de outro modo. perdemos alguém, e temos de superar o primeiro inverno a sós, e a primeira primavera e depois o primeiro verão, e o primeiro outono. e dentro disso, é preciso que superemos os nossos aniversário, tudo quanto dá direito a parabéns a você, as datas da relação, o natal, a mudança dos anos, até a época dos morangos, o magusto, as chuvas de molha-tolos, o primeiro passo de um neto, o regresso de um satélite à terra, a queda de mais um avião, as notícias sobre o brasil, enfim, tudo. e também é preciso superar a primeira saída de carro a sós. o primeiro telefonema que não pode ser feito para aquela pessoa. a primeira viagem que fazemos sem a sua companhia. os lençóis que mudamos pela primeira vez. as janelas que abrimos. a sopa que preparamos para comermos sem mais ninguém. o telejornal que já não comentamos. um livro que se lê em absoluto silêncio. o tempo guarda cápsulas indestrutíveis porque, por mais dias que se sucedam, sempre chegamos a um ponto onde voltamos atrás, a um início qualquer, para fazer pela primeira vez alguma coisa que nos vai dilacerar impiedosamente porque nessa cápsula se injeta também a nitidez do quanto amávamos quem perdemos, a nitidez do seu rosto, que por vezes se perde mas ressurge sempre nessas alturas, até o timbre da sua voz, chamando o nosso nome, ou mais cruel ainda, dizendo que nos ama com um riso incrível pelo qual nos havíamos justificado em mil ocasiões no mundo.

valter hugo mãe, A máquina de fazer espanhóis

Foi a primeira vez que sublinhei um livro de literatura despretensiosamente. Sempre fui pragmático nas sublinhadas. Como esteves, o sem metafísica: era eu, o pragmático. Também sem metafísica. O ato de percorrer as linhas com o lápis em punhos em uma régua como guia sempre teve uma finalidade pré-determinada. Queria impressionar quem pegasse meu livro posteriormente, queria citar o trecho academicamente. Nunca soube sublinhar sem réguas. Mania de um perfeccionismo apenas nesse aspecto. Não gosto de cores, uso o lápis. A lapiseira, já que carregar um apontador traz muita sujeira e a necessidade de apontar. Também não gosto das pontas de lápis. Ou ficam grossas demasiadamente ou finas e quebradiças. Seguro uma lágrima após a leitura. A mão treme na segunda leitura enquanto o trecho é sublinhado. Não ando com cabeça para tal leitura. Um dia terei?

24 de set. de 2013

Mil-folhas

mexerica,
bergamota.
aipim,
mandioca.

folha quebra,
eu repuno.
uma aspereza,
copo d'água.

o luso dizia:
pastel de belém
não há
pelas bandas de cá.

no prato
ou na mão?
quebro
com a colher.

a mulher?
uma rapariga.
ora, poeta
de uma figa.

repito
o que eu fito
enquanto grito:
uma massa folhada!

3 de abr. de 2013

Que não demora pra essa dor sangrar

Da estupidez, a culpa. Do descuido, o receio. Me perseguem. Assim como a insônia me persegue, as neosaldinas, as gastrites provocadas pelo exagero na cafeína, o sedentarismo, a alimentação péssima, os cigarros sem vontade, as enxaquecas pelos óculos fracos, as leituras demasiadas e o tédio. Todos me perseguem. Uma falta que não sei porquê insiste em bater. A solidão continua a me perseguir. Sigo com poucos amigos, penso que os que tenho são suficientes, apesar de distante. Minto, mas que são os melhores, não posso negar. O caminho do bar me persegue, apesar de ser um caminho. Caminho com pegadas de ser trilhado incansavelmente.
Tem sido difícil, mas não é um lamento. Uma dificuldade boa igual aquela que meu pai disse que bom quando disse que as novas aulas estavam complicadas. Esse espaço chamo de meu, tenho horários bizarros e ninguém reclama dos barulhos em plena madrugada, a tediosa faxina parece me enobrecer. Maresia de um mar invisível.
Estúpido como um prego sendo pregado por um velhote que sofre de Parkinson, sim, senhor. Depois de mil marteladas, o prego ainda permanece sem capacidade alguma de pendurar coisa alguma. Enfim, sinto culpa pela infantilidade e imaturidade. Blablablás moralistas que parece que perseguirão eternamente. Falo com um orgulho fingido e sinto falta sem motivos. Um fim procrastinado com desrespeitos mútuos, falta de privacidade e orgulho; de escândalos quando já não havia mais o que ser feito. Peço desculpas pelo novo fatídico e escrevo pra esquecer sem estar embasbacado. Um pouco arrependido e saudoso, embora convencido.

21 de jan. de 2013

Eu só procuro um amor bobinho,
com sabor de fruta mordida.
Daqueles com convite para a peteca
ou dedicados a uma menina com uma flor.
Um amor viniciano.
Que promete um amor eterno com exceções
e aguentam a voz desafinada.
Daqueles que não poetizam só na ausência,
mas sabem ver dela a matéria da saudade.
Um amor imparcial, mas complacente.
Um amor dedicado e auto-suficiente.
De risos fáceis e colos dispostos.
Do coito delicado e também estridente.
Um amor sem votos, mas de esperanças.
De frustrações e mil perdões.
O amor que é dado bem baixinho
e gritado aos quatro ventos.
Um amor machucado, mas seguro.
Um amor do pretérito
e conjugado no presente.
Um amor experiente, mas neófito.
Um amor de solidão
e conforto mútuo.
De dedicação exclusiva consigo mesmo.
Um amor ímpar entre um par
e um amor que saiba ver-se só.

6 de nov. de 2012

São tempos difíceis para os sonhadores

Minha mira sermpre falha na tentativa de atirar o cigarro pelo vão de janela aberta e tenho que limpar as cinzas espalhadas pelo chão no rebote da veneziana. Treinei com esmero a habilidade de contorcer os dedos e, em um peteleco golpeando o nada, fazer a pequena bituca percorrer longas distâncias, mas o senso de espaço é falho e o objetivo nunca é plenamente alcançado. Herança de minha mãe, sempre detestei cinzeiros. Cinzas não se guardam sem que o ambiente fique impregnado. Por outro lado, tenho uma pequena mania de guardar muitos objeto inúteis com esperança de um fim futuro que, obviamente, nunca chega. Minha desorganização é demais para tal atitude e mesmo chegado o dado momento, já não o encontro mais. Deletei minha conta do Facebook, o portaporcarias-mor. Centenas de amigos que carrego descaso, mensagens de tempos pré-históricos, fotinhos e citações para ser cult. Diligência do tempo buscada por negligência de aspectos outros. Alguns dias depois, passei a receber e-mails de pessoas queridas perguntando acerca e primando que o contato fosse mantido. Sempre gostei do campo de e-mail: um branco mudo convite como a pena de Ana C. A falta de obrigação em uma resposta imediata, a fuga de requintes e etiquetas do tipo tudo bem? e a possibilidade de falar de coisas que importam realmente. Gosto de banalidades, mas me canso.
Dias sem lirismo tem me percorrido. Talvez de algum fingido, mas quando esse não o é? Palavras bobas não saem da boca ou preenchem as linhas mais com tanta facilidade. Tenho poucas esperanças, mas ainda as tenho, caso contrário nem tocava no assunto. Seja por falta de vinho ou por andar ocupado demais para perder-me em tonturinhas do tipo sentir. Li em uma dada rede social de 140 caracteres algo que dizia O mundo acabando e eu aqui pensando em coisas bobas do tipo que te amo e tal ou algo que o valha. Herdei de meu pai um pragmatismo em busca de perspectivas antes de buscar as coisas que viriam com essas. Grande bobagem. Tenho de inventá-las para que existam. São tempos difíceis para os sonhadores.

7 de jun. de 2012

Medo da perda

Sente-se do lado do inimigo, aperte os cintos e aproveite a viagem. A poltrona deve ficar levemente inclinada: se deitar totalmente, a guarda cai e o sono vem, se permanecer na posição original, a tensão transparecerá. Medo da perda. Ações e reações com finalidades pré-concebidas por temer a perda. Pouco importa o que se sente. O ter toma a dianteira de qualquer outra manifestação do sentir. Falar em sentimento cansa e é bobo. Carinhos trocados sem significados, um show de gritos e sussurros para uma plateia invisível enquanto o pensamento alça um voo inesperado que jamais chegará ao seu destino. Palidez diante da ausência, ânsia por controle e detalhes de pouca importância. Teoria maniqueístas sobre conspirações em regimes que jamais existiriam. Rima pobre e metáfora sem significado. Falta de poesia e frigidez dos corpos quentes. Movimentos robóticos de um eletropunk decadente tocada por uma banda que sonha em ser star sem técnica alguma. Boquete estético em um monstro gigantesco e sem falo. Psicanálise do consciente e inconscência fingida. Descaso com a métrica de uma prosa de areia. Quando se imita gestos de momentos longíquos é cinismo chamar de deja vú ou fingir esquecimento. A lógica é estúpida, mas a insistência é mantida por auto-flagelo. Carvões acesos e uma parafernalha de coisas a fazer ignoradas.