eu
estou bem, dizia-lhe, estou bem. e ele queria saber se estar bem era
andar de trombas. eu respondi que o tempo não era linear.
preparem-se sofredores do mundo, o tempo não é linear. o tempo
vicia-se em ciclos que obedecem a lógicas distintas e que se vão
sucedendo uns aos outros repondo o sofredor, e qualquer outro
indivíduo, novamente num certo ponto de partida. é fácil de
entender. quando queremos que o tempo nos faça fugir de alguma
coisa, de um acontecimento, inicialmente contamos os dias, às vezes
até as horas, e depois chegam as semanas triunfais e os largos meses
e depois os didáticos anos. mas para chegarmos aí temos de sentir o
tempo também de outro modo. perdemos alguém, e temos de superar o
primeiro inverno a sós, e a primeira primavera e depois o primeiro
verão, e o primeiro outono. e dentro disso, é preciso que superemos
os nossos aniversário, tudo quanto dá direito a parabéns a você,
as datas da relação, o natal, a mudança dos anos, até a época
dos morangos, o magusto, as chuvas de molha-tolos, o primeiro passo
de um neto, o regresso de um satélite à terra, a queda de mais um
avião, as notícias sobre o brasil, enfim, tudo. e também é
preciso superar a primeira saída de carro a sós. o primeiro
telefonema que não pode ser feito para aquela pessoa. a primeira
viagem que fazemos sem a sua companhia. os lençóis que mudamos pela
primeira vez. as janelas que abrimos. a sopa que preparamos para
comermos sem mais ninguém. o telejornal que já não comentamos. um
livro que se lê em absoluto silêncio. o tempo guarda cápsulas
indestrutíveis porque, por mais dias que se sucedam, sempre chegamos
a um ponto onde voltamos atrás, a um início qualquer, para fazer
pela primeira vez alguma coisa que nos vai dilacerar impiedosamente
porque nessa cápsula se injeta também a nitidez do quanto amávamos
quem perdemos, a nitidez do seu rosto, que por vezes se perde mas
ressurge sempre nessas alturas, até o timbre da sua voz, chamando o
nosso nome, ou mais cruel ainda, dizendo que nos ama com um riso
incrível pelo qual nos havíamos justificado em mil ocasiões no
mundo.
valter
hugo mãe, A máquina de fazer espanhóis
Foi a
primeira vez que sublinhei um livro de literatura
despretensiosamente. Sempre fui pragmático nas sublinhadas. Como
esteves, o sem metafísica: era eu, o pragmático. Também sem
metafísica. O ato de percorrer as linhas com o lápis em punhos em
uma régua como guia sempre teve uma finalidade pré-determinada.
Queria impressionar quem pegasse meu livro posteriormente, queria
citar o trecho academicamente. Nunca soube sublinhar sem réguas.
Mania de um perfeccionismo apenas nesse aspecto. Não gosto de cores,
uso o lápis. A lapiseira, já que carregar um apontador traz muita
sujeira e a necessidade de apontar. Também não gosto das pontas de
lápis. Ou ficam grossas demasiadamente ou finas e quebradiças.
Seguro uma lágrima após a leitura. A mão treme na segunda leitura
enquanto o trecho é sublinhado. Não ando com cabeça para tal
leitura. Um dia terei?
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