26 de set. de 2013

eu estou bem, dizia-lhe, estou bem. e ele queria saber se estar bem era andar de trombas. eu respondi que o tempo não era linear. preparem-se sofredores do mundo, o tempo não é linear. o tempo vicia-se em ciclos que obedecem a lógicas distintas e que se vão sucedendo uns aos outros repondo o sofredor, e qualquer outro indivíduo, novamente num certo ponto de partida. é fácil de entender. quando queremos que o tempo nos faça fugir de alguma coisa, de um acontecimento, inicialmente contamos os dias, às vezes até as horas, e depois chegam as semanas triunfais e os largos meses e depois os didáticos anos. mas para chegarmos aí temos de sentir o tempo também de outro modo. perdemos alguém, e temos de superar o primeiro inverno a sós, e a primeira primavera e depois o primeiro verão, e o primeiro outono. e dentro disso, é preciso que superemos os nossos aniversário, tudo quanto dá direito a parabéns a você, as datas da relação, o natal, a mudança dos anos, até a época dos morangos, o magusto, as chuvas de molha-tolos, o primeiro passo de um neto, o regresso de um satélite à terra, a queda de mais um avião, as notícias sobre o brasil, enfim, tudo. e também é preciso superar a primeira saída de carro a sós. o primeiro telefonema que não pode ser feito para aquela pessoa. a primeira viagem que fazemos sem a sua companhia. os lençóis que mudamos pela primeira vez. as janelas que abrimos. a sopa que preparamos para comermos sem mais ninguém. o telejornal que já não comentamos. um livro que se lê em absoluto silêncio. o tempo guarda cápsulas indestrutíveis porque, por mais dias que se sucedam, sempre chegamos a um ponto onde voltamos atrás, a um início qualquer, para fazer pela primeira vez alguma coisa que nos vai dilacerar impiedosamente porque nessa cápsula se injeta também a nitidez do quanto amávamos quem perdemos, a nitidez do seu rosto, que por vezes se perde mas ressurge sempre nessas alturas, até o timbre da sua voz, chamando o nosso nome, ou mais cruel ainda, dizendo que nos ama com um riso incrível pelo qual nos havíamos justificado em mil ocasiões no mundo.

valter hugo mãe, A máquina de fazer espanhóis

Foi a primeira vez que sublinhei um livro de literatura despretensiosamente. Sempre fui pragmático nas sublinhadas. Como esteves, o sem metafísica: era eu, o pragmático. Também sem metafísica. O ato de percorrer as linhas com o lápis em punhos em uma régua como guia sempre teve uma finalidade pré-determinada. Queria impressionar quem pegasse meu livro posteriormente, queria citar o trecho academicamente. Nunca soube sublinhar sem réguas. Mania de um perfeccionismo apenas nesse aspecto. Não gosto de cores, uso o lápis. A lapiseira, já que carregar um apontador traz muita sujeira e a necessidade de apontar. Também não gosto das pontas de lápis. Ou ficam grossas demasiadamente ou finas e quebradiças. Seguro uma lágrima após a leitura. A mão treme na segunda leitura enquanto o trecho é sublinhado. Não ando com cabeça para tal leitura. Um dia terei?

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