Seu dia começava nublado
pela visão de sua janela e dentro de si mesmo. Não tinha vontade de
levantar, mas já não trabalhava há dois dias. Não sabia se era
incompleto por não saber como completar-se ou por falta de ânimo.
Embarcou no ônibus para o trabalho meia hora depois que deveria
estar chegando.
Durante o caminho para o
trabalho tentava ler alguma coisa. Repetia as mesmas linhas sem se
dar conta, mas tinha vergonha de guardar o livro de volta na sua
bolsa logo depois de tê-lo aberto. Sempre tivera essa sensação que
era observado por todos ao seu redor. Quando criança imaginava
câmeras escondidas por sua casa. Sempre ao tropeçar na rua olhava
para os lados tentando notar quantas pessoas haviam reparado. Decidiu
que iria embora naquele dia. Não sabia como, mas iria. Sempre tivera
boas ideias ao andar de ônibus. O sono havia passado, mas seguia sem
vontade de trabalhar. Lembrara de um dia que foi trabalhar sem ter
dormido. Recebera uma visita naquela madrugada e a fez prometer que
não o deixaria dormir. Viravam-se na cama, olhavam para o teto
juntos: rindo sem o menor motivo. Passou um bule de café ao
depararam-se com as primeiras luzes adentrando as frestas da janela.
Foi a última vez que a viu. Não se despediram.
Tinha vergonha de entrar
no trabalho tão atrasado, mas fingiu que não tinha se passado. O
chefe fingiu que ele não estava ali e ele baixou a cabeça para
tentar colocar seu trabalho em dia. Sua cadeira rotatória parecia
dar voltas em seu próprio eixo e, cada vez mais, sentia-se tonto.
Todos os dias ele se recriminava pela sua mania de procrastinar, mas
não conseguia fazer nada a respeito. Faltavam-lhe forças, mais do
que isso, faltava ânimo.
Era uma quinta-feira.
Decidiu que viajaria no dia seguinte em direção a Porto Alegre. Foi
ao banco após o trabalho e notou que tinha menos dinheiro do que
imaginava. Ele sempre tentava mentir pra si mesmo quanto aos seus
gastos. Ao se deparar com a realidade do extrato bancário, via seu
novelo cada vez mais emaranhado. Foi à rodoviária comprar sua
passagem mesmo sem saber se teria dinheiro para voltar para casa.
Animou-se instantaneamente como se tivesse aplicado a si mesmo uma
dose de adrenalina. Não soube o porquê. Talvez a viagem lhe traria
um pouco de esperança.
Acordou cedo no dia da
viagem, amassou algumas roupas dentro da sua bolsa, alguns livros e
um caderno de anotações. Ao fechar a porta, teve impressão que seu
apartamento não seria o mesmo ao voltar para casa.
Chegou cedo para
trabalhar. Seu dia pesadamente de forma apressada. Saiu tardiamente
da labuta, mas seu ônibus ainda demoraria duas horas para sair.
Lembrou que não havia avisado para ninguém que viajaria e nem sabia
onde ficar em Porto Alegre. Pensou em ligar para alguns amigos, mas
desistiu. Queria ficar só naquele dia. Bebeu uma cerveja enquanto
esperava na rodoviária e fumou mais cigarros do que deveria.
Ao entrar no ônibus,
carregava um peso que parecia colocar em xeque a vida que levava. Só
tinha uma certeza: pelo menos ainda há um movimento possível.
Fechei os olhos logo após
ter sentado na poltrona e só voltei a abri-los na entrada da
rodoviária que passei todos os finais de semana por muitos anos
atrás. Ela carregava a melancolia e o saudosismo do tempo que havia
morado naquela cidade.
Já passava da
meia-noite, mas não quis tomar um táxi. Desci até o metrô e tomei
o último trem até o mercado público. As ruas sujas e o cheiro de
peixe me alegravam estranhamente. Vaguei pelo centro até a Lima e
Silva.
Sentei em algum bar da
Rua da República e pedi uma cerveja. Quando voltei a mim, o garçom
tocava meu ombro dizendo que o bar fecharia logo e se eu queria mais
uma cerveja. Recusei. Vaguei de bar em bar até amanhecer. Não sei
dizer por quais lugares passei e as pessoas que lá estavam. Algumas
falaram comigo e como quem coloca um aviso na porta para que não
incomodassem, apenas me desculpava e buscava o fundo do copo e logo
da garrafa. A noite passou em um piscar de olhos e sol apareceu antes
que eu esperava. Carregava um cansaço nas costas, mas não sentia
sono.
Voltei para o centro da
cidade e caminhei sem direção anteriormente especificada. Passava
por lojas carregadas de poeiras e memórias que me despertaram uma
curiosidade inexplicável. Sentia adentrar em mim, sem permissão
prévia, aqueles significados dos objetos usados que eram vendidos
naqueles antiquários. Não saberia dizer quanto tempo contemplei as
vitrines que ali estavam. Anos se passaram para mim e eu seguia
estático a cada nova vitrine. No centro de um armário de vidro
espelhado notei de longe um relógio de bolso. Estava sem tampa, mas
parecia que havia um holofote voltado para ele. Não sei o que mais
era vendido naquela loja, talvez só existisse o relógio. Tanto faz.
Para mim só existia ele.
Um senhor antipático
perguntou o que eu desejava. Bati os ombros e parei em frente ao
armário. Ele me falou que o relógio custava vinte reais. Tirei todo
o dinheiro que tinha nos bolsos e ainda faltavam três reais. Ele
disse para eu voltar depois. Abri minha bolsa e tirei uma caneta que
havia ganhado há muito tempo. Não conseguia recordar a situação e
não me esforçava para tal. Ele aceitou e me cobrou mais dez reais
pelo relógio. Coloquei-o no bolso do paletó e me dirigi à porta da
loja com certo receio. Como quem vai embarcar em um avião e tem medo
de ser parado no detector de metais. Senti que carregava um fardo no
bolso, mas um fardo que brilhava e refletia toda a esperança que
havia conquistado ao embarcar na jornada.
Vejo um rosto familiar
atrás da vidraça. Um rosto que não via há muito tempo e que
talvez fosse o que mais desejava encontrar no momento. Tentei correr
em direção à porta, mas as pernas pareciam pesar milhares de
toneladas. Fui carregado pelo vento e abri a porta em um impulso.
Olá.
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