28 de jun. de 2011

Empobreço embebecido para a justificação de minha alma

 Eis o que se conta sobre Ricardo Peixoto: morrera aos quarenta anos de idade após ter vivido uma vida bem-sucedida profissionalmente, porém solitária. A ele foi dedicado um velório pomposo com muitos presentes, porém poucos amigos. Poucas palavras foram ditas para se referir à sua vida e para expressar sobre a sua atual ausência. O seu túmulo adentrava a masmorra de seus familiares muito conhecidos na sociedade e em pedra era esculpido seu nome abaixo do nome de seus pais seguido de seu ano de nascimento e morte. Notava-se claramente a presença de frases de impacto nas esfinges de suas três gerações de ancestrais que habitavam as lápides circundantes, entretanto nada era dito sobre Ricardo. Diziam ser uma morte prematura para quem vivia o auge de sua produtividade, mas poucos sabiam do mal que o assolara meses antes de sua morte.

Ricardo vinha de uma família tradicional intelectual de sua cidade. Cresceu em  meio a peças teatrais, concertos musicais, rodeado de estantes de livros de todos os tipos. Falava três idiomas ao principiar sua adolescência e viajou grande parte do mundo ainda muito moço. Como era esperado, teve uma carreira brilhante. Principiou a faculdade com dezesseis anos e se formou muito cedo. Sua família era composta por artistas, filósofos e pensadores muito respeitados. Contrariamente, Ricardo estudou publicidade, mas isso não impediu de conquistar o orgulho familiar, apenas o consideravam um bocado medíocre secretamente.

Antes de completar trinta anos já havia aberto sua própria empresa e dotava de um prestígio nacional por ser muito criativo em criar propagandas com jargões que eram repetidos em todos os âmbitos da sociedade, quase que, maquinalmente. Trabalhava muito e era extremamente bem-sucedido, mas carregava um vazio muito grande dentro de si apesar de tudo.

Tecia relações com diversas mulheres. Durante a primeira parte de sua vida, havia sido muito reservado. Teve sua primeira namorada ainda muito jovem, com a qual permaneceu por cinco anos sem conhecer outras pessoas. Quedava-se absorto no trabalho e a companhia dela era um complemento para seus momentos de descanso. Ao ter a vida consolidada, viu que não necessitava mais de sua companhia e após isso não soube mais como se entregar a alguém, mas pouco lhe importava. Dividia a cama com um novo alguém diferente quase todas as noites, mas na manhã seguinte enojava-se de si próprio e da pessoa que o acompanhava. Não que essas mulheres não fossem belas ou pouco interessantes, entretanto não sabia mais como sentir qualquer coisa.

A sua família cobrava valores burgueses dele, contraditoriamente. Perguntavam sobre casamento, filhos, estabilidade. Ele dissimulava com frases feitas alegando haver tempo e outras prioridades e que, ademais, não havia motivos para precipitar-se, apesar de saber que o tempo pouco mudaria suas convicções.

Certo dia ouviu uma anedota de um mendigo pregador que lhe pedia esmolas ao mesmo tempo em que este sacudia uma bíblia ao ar e falava palavras com pouco sentido. Ricardo guardou uma pequena frase que o perseguiu até seu último dia: “de que adianta ganhar o mundo inteiro e perder sua alma?” Sentiu o ar rarefeito e jogou algumas notas no chapéu que o pedinte deixara jogado ao chão e correu sem direção alguma esbarrando nos transeuntes.

Sua semana fora perdida. Alegou estar indisposto e não foi à agência nenhum dia naquela semana. Um peso tomou Ricardo e ele perdera a vontade de fazer qualquer coisa útil. Matutava sobre a frase jogada em sua face e no ar pairava seu desconforto perante a apunhalada.

De um lapso de consciência encontrou um alívio instantâneo: iria morrer, precisava elaborar um epitáfio. Pensou consigo mesmo “tarefa simples, já que tenho como profissão este tipo de elaboração”.
Via seus dias se encaminharem rapidamente para o derradeiro dia. Os ponteiros giravam ao contrário de um relógio que não pararia até o seu fim. Sua aflição foi remediada por poucos instantes, porque logo se viu em um novo impasse e que a solução não seria mais tão evidente. Se colocar para a eternidade não era uma tarefa simples e um complexo de megalomania se apossava dele toda vez em que tentava tecer as palavras lapidais.

Noites mal dormidas e dias intermináveis seguiam contraditoriamente as suas últimas semanas. Ao mesmo tempo em que se via improdutivo e os minutos como horas perante sua impotência e seu tédio, via mais um dia terminado e a ausência de sono se aproximar perante o cansaço de seu corpo.

Começou a beber demasiadamente para sufocar o peso de sua ausência de alma. Durante uma típica noitada em seu lugar habitual, ouviu uma frase despretensiosa do garçom sobre seu estado atual de alcoolismo e decadência. Como um tiro no escuro, escuta serem proclamadas as frases que lhe colocariam na eternidade da masmorra de sua família.

De súbito, sai correndo do bar para anunciar ao seu mordomo as palavras que retrariam sua existência e seu vazio de alma durante a vida. Do desespero do seu novo encontro com a vida, desliga-se dos arredores e atravessa a rua despreocupadamente para adentrar seu carro importado e despertar seu criado. Luzes no asfalto iluminam seu corpo e vê-se caído no meio-fio.

Eis o que se conta sobre Ricardo Peixoto: morrera prematuramente sem alma e sem epitáfio.

Um comentário:

  1. às vezes eu leio algo como esse seu texto e fico comovida e lamento Ricardo Peixoto
    outras vezes eu penso "c'est la vie, mon cher!"

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